O aparente desespero do presidente Bush ao se dirigir ontem ao país devia servir ao menos para refrescar a memória para a obsessão desregulamentadora dos governos republicanos, desde Ronald Reagan. Mas não convém alimentar ilusões, já que o candidato do partido é John McCain, que só este ano já repetiu 18 vezes sua frase predileta: "Os fundamentos de nossa economia são sólidos".
Quem tomou a iniciativa de lembrar o papel de Reagan foi a colunista Arianna Huffington. Disse ela: "Já no discurso de posse ele fez a declaração célebre de que 'o governo não é a solução do nosso problema; o governo é o problema'. Vinte e sete anos depois, no meio da pior crise econômica desde a Grande Depressão, (...) aquele grito de guerra anti-governo devia estar sendo julgado. Mas, por incrível que pareça, não está".
Felizmente a ênfase e a eloqüência da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, deu o recado no dia 29: "A farra acabou. Acabou o tempo dos `pára-quedas dourados' e gordas compensações para executivos de Wall Street, da disparidade dos salários obcenos de CEOs, das instituições financeiras privatizando e ampliando ganhos, depois nacionalizando os riscos e mandando a conta para os contribuintes."
O fracasso da política de Bush
A democrata Pelosi, da Califórnia, é a primeira mulher na história a ocupar a presidência da Câmara - segunda na linha de sucessão, em seguida ao vice-presidente. Ela teve o mérito de marcar posição e, no mesmo pronunciamento, declarar fracassada a política econômica de Bush. "Não é mais necessária qualquer outra prova", afirmou.
Mas ontem alguns republicanos da Câmara, onde mais da metade da bancada do partido negou os votos ao pacote de Bush e contribuiu para a derrota de seu próprio governo, alegaram ter sido essa decisão uma reação ao discurso de Pelosi e sua ênfase na condenação da atual política. Pelo menos um dos republicanos que votaram "sim" rejeitou a alegação. "É uma desculpa idiota", afirmou.
Pelosi, na verdade, conseguiu reunir mais votos para aprovar o pacote de Bush do que a liderança republicana da Câmara. Naturalmente os adversários republicanos dela não esperavam que, além de dar o apoio solicitado pelo governo adversário em meio à crise, Pelosi ainda fizesse uma profissão de fé nos desmandos econômicos do bushismo durante os últimos sete anos e meio.
O guru da desregulamentação
Já o candidato John McCain orgulhava-se, até agora, de sua dedicação em toda a carreira política à causa da desregulamentação. Daí ter escolhido para guru em economia o ex-senador Phil Gramm, que era co-presidente da campanha até julho, quando teve de ser por ter desmentido a ameaça de recessão (que subestimou como "recessão mental") e ter dito "esta é uma nação de choramingões" ("a nation of whiners").
Ainda apontado como o preferido de McCain para secretário do Tesouro, no caso de vitória republicana, Gramm é encarado agora como o gênio do mal que mais trabalhou para a economia do país ter chegado à atual situação desastrosa. Curiosamente, o papel de Gramm, citado com freqüência nesta coluna, acaba de ser descoberto em Nova York pelo colunista Merval Pereira, de "O Globo".
Mas ele mistura as bolas: refere-se ao penduricalho enfiado na lei orçamentária (como "Commodity Futures Modernization Act") por Gramm em 2000, dizendo ter sido já no governo Bush. Na verdade, a posse de Bush foi a 20 de janeiro de 2001 e Gramm botou seu "contrabando" de 262 páginas, como escrevi antes, alguns dias depois da decisão da Suprema Corte que "elegeu" o presidente.
A pretexto de "modernização", o pacote revogou leis do governo Roosevelt baixadas para prevenir crises iguais à de 1929 - como a que proibia promiscuidade de bancos comerciais e de investimentos. Impedia agências reguladoras de fiscalizar novos instrumentos financeiros, instituições como fundos "hedge" (derivativos) para garantir que seus ativos eram suficientes para cobrir perdas eventuais do que estavam garantindo.
Fidelidade ao santo padroeiro
O mercado para aqueles instrumentos financeiros sofisticados a que se referia a lei Gramm é estimado em US$ 60 trilhões por ano, quase quatro vezes todo o mercado de ações dos EUA. Ele queria tudo desregulamentado. E não criou tal mundo de conto de fadas só para a Wall Street. Um dispositivo impedia ainda a regulamentação dos mercados de venda de energia, abrindo caminho às fraudes da Enron - onde sua mulher ganhava US$ 2 milhões por ano.
Concluir, como Merval, que McCain teve uma epifania, "está menos convicto da necessidade de aplicar na prática a teoria do livre mercado", é só para quem acredita em Papai Noel. J'a passou da idade e seu santo padroeiro é Reagan. Além disso, não podemos esquecer que sua carreira política quase terminou ao tentar influir junto aos reguladores, a favor do banqueiro corrupto Charles Keating, da Lincoln Banking, no escândalo S&Ls.
Com o teatro da "suspensão da campanha", McCain buscou criar factóide capaz de mudar o quadro eleitoral desfavorável. Ao tropeçar em Washington com deputados republicanos em desespero para salvar as próprias cadeiras, percebeu que nada tinha a negociar - e se omitiu na reunião convocada por Bush. Como disse Paul Krugman, vai de um extremo a outro, sem rumo certo, admite desconhecer economia. Ainda deve achar que os fundamentos continuam sólidos.
Fonte: Tribuna da Imprensa.
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