quarta-feira, 1 de outubro de 2008

ARTIGO - Você usaria a bicicleta como meio de transporte?

Essa foi a escolha dos três brasileiros acompanhados pelo Blog das Ruas nesta matéria. Pode parecer estranho para quem está acostumado com o carro, mas até que é uma opção bem comum no Brasil. Setenta por cento dos cerca de 100 milhões de ciclistas do país usa, sim, a bicicleta como meio de transporte.

- Há muitos ciclistas pedalando nos centros urbanos, mas eles são invisíveis, pois eles não ocupam espaço, não fazem barulho, não perturbam as pessoas e dá essa impressão de que tem pouca gente andando de bicicleta – diz em entrevista o ciclioativista André Paqualini.

Com a proximidade de eleições municipais em que o tema do uso das “magrelas” tem ganhado espaço, o Blog das Ruas foi conhecer o cotidiano de alguns dos ciclistas urbanos do país. Nas próximas linhas, Humberto Fernandes, Gunnar Thiessen e Edmílson da Silva contam a sua história sobre as duas rodas.

Economista de 24 anos, Gunnar Thiessen nunca aprendeu a dirigir. Avesso a carros desde criança, cultivava o pânico de um dia ter que dirigir um. A solução para ir de um lugar ao outro sempre era a mesma: o velho e nem sempre bom transporte coletivo. Sempre gostou da bicicleta, mas achava que usá-la “seria impossível em Curitiba”.

Há pouco mais de um ano, conheceu o movimento bicicletada e, no mesmo dia, comprou uma bicicleta.

- Além de ser um carro a menos atrapalhando o trânsito, a bicicleta trouxe grandes benefícios à minha saúde. Melhorei a musculatura das pernas, a respiração, o sistema circulatório, a imunidade, o condicionamento físico, a resistência. Pedalar ajudou a melhorar muito o meu humor, a disposição, e, por conseqüência, meu sono (sofro de insônia crônica) – relata.

Gunnar descreve ainda outras transformações, ocorridas em função do uso constante da bike. “Mudei radicalmente a maneira de enxergar a cidade”. Segundo o ciclista, a “magrela” estimula a convivência, aproxima as pessoas de outras, pedestres ou ciclistas, e também ajuda a ver mais de perto as “belezas e agruras” da cidade.


Gunnar, que nunca aprendeu a dirigir: "meus colegas acham que faço um sacrífico. Sacrifício é causar e ficar preso em engarrafamentos"

- Tornei-me muito mais consciente no trânsito. O ciclista, numa cidade como Curitiba, é obrigado a se comportar "marginalmente", já que não há infra-estrutura adequada e muito menos respeito por parte dos motoristas. Assim, necessariamente tem que estar sempre muito atento e geralmente acaba desenvolvendo uma reflexão acerca do trânsito. Desenvolvi um profundo respeito pela figura do pedestre, ao qual cedo a preferência sempre, não importa qual seja a situação – afirma.

Na escala de meios de transporte utilizados por Humberto Fernandes, 40, a bicicleta vem em segundo lugar, superada apenas pela caminhada. “Tudo começou quando resolvi diminuir drasticamente minhas demandas de deslocamento”, explica.

O analista de sistemas mudou-se para perto do trabalho e dos serviços que usava muito (cinema, teatro, supermercados etc.). Resultado: dividido entre usar os pés e os pedais, praticamente abandonou o carro.

- Deu tão certo que com poucos meses eu simplesmente vendi o carro. É raríssimo um dia em que não pedalo por algum motivo. E ainda mais raro eu dirigir. Minha habilitação venceu e não me preocupei em renová-la – comenta o ciclista.

Fernandes argumenta que, em Belo Horizonte, a bicicleta é o meio de deslocamento mais eficiente. “É mais ágil que os carros; ganha do ônibus por ser individual e porta-a-porta e porque esse sofre ainda mais com os congestionamentos; é quatro vezes mais rápida que a caminhada e ganha do metrô por esse ser muito restrito em BH”.

Segundo o analista de sistemas, a “magrela” só não compensa quando a distância é muito curta, favorável a uma caminhada, ou muito longa, mais apropriada ao carro ou transporte coletivo. Destaca, entretanto, que a maioria dos nossos deslocamentos tem distância média.

Humberto Fernandes cita três qualidades do uso da bicicleta: saúde, economia e o baixíssimo impacto ambiental.

- Pode-se olhar para a poluição atmosférica e sonora da cidade, pode-se olhar para os impactos dos congestionamentos na qualidade de vida dos cidadãos, e pensar: "Eu não tenho uma vírgula de responsabilidade nisso” – diz.

A economia foi o principal motivo da adesão de Edmílson Leôncio da Silva, 38, à bicicleta, há cerca de dois anos. Porteiro de um condomínio de casas de classe média alta, Edmilson economiza quatro passagens de ônibus por dia com o uso da bike. “Fica o pão para os meninos tomarem café”, afirma.


Humberto Fernandes, sobre impacto ambiental dos veículos:
"Não tenho uma vírgula de respoinsabilidade nisso"

Morando numa invasão no bairro Colinas de Mussurunga I, o porteiro divide a casa com a mulher (que não trabalha), seus três filhos e um sobrinho. Conta que, além do dinheiro, economiza tempo: “Para eu pegar os dois ônibus, levava uma hora. Com a bicicleta, faço o caminha em meia”.

Fechadas, preconceito e violência

Todos os três ciclistas reclamem da hostilidade do trânsito motorizado, de fechadas e descuido dos motoristas. O Código Nacional de Trânsito, embora dedique artigos específicos à regulamentação da circulação das bicicletas, é, na maior parte das vezes, desrespeitado. “Em geral, os motoristas tanto de automóveis quanto de ônibus e caminhões tratam o ciclista como um intruso na rua”.

Entretanto, Edmilson é quem enfrentou situações mais difíceis pedalando. O porteiro é explícito quanto a outras formas de violência:

- Já tomei pancada de tapete de carro, de camisa molhada, já levei ovo. A polícia sempre aborda mal abordado. Dizem: “Bora, vagabundo, desce daí”.

Fica claro que, além do preconceito com a bicicleta, Edmilson sofre também o preconceito de classe, tão arraigado no Brasil. Enquanto ele é identificado como um “vagabundo”, Humberto e Gunnar são vistos com um misto de admiração e jocosidade, por fazerem o sacrifício de abrirem mão do conforto pelo meio ambiente.

- Ninguém até hoje entendeu que eu pedalo simplesmente porque é melhor pedalar, e que não estou fazendo nenhum sacrifício, pelo contrário: de bicicleta é mais rápido e mais divertido. Desconforto é ficar isolado dentro de um carro. Sacrifício é causar e ficar preso em engarrafamentos! – protesta Gunnar.

Ativistas do ciclismo, Humberto e Gunnar sugerem uma série de medidas que, adotadas pelo governo e por empresas, poderiam facilitar e estimular o uso das bikes:

- Ciclovias e ciclofaixas, inclusive nas vias expressas;
- Locais para deixar as bicicletas com segurança;
- Bicicletários seguros nas estações de metrô;
- Transporte de bicicletas nos últimos vagões do metrô, fora de horários de pico;
- Racks nos ônibus para transporte de bicicletas;
- Distribuição de paraciclos pela cidade;
- Educação para o trânsito;
- Banheiros e vestiários nas empresas;
- Planejamento urbano adaptado a deslocamentos médios e curtos.

- Mas o maior entrave é o fator cultural. No Brasil, existe uma forte mística em torno do automóvel, como símbolo de status e sucesso – comenta Gunnar. O ciclista ainda cita, com desdém, o slogan de uma companhia de combustíveis: “Brasileiro é apaixonado por carro”. Já Edmilson Silva, é mais descrente: “aí, para educar o povo é difícil...”.


O porteiro Edmílson: "Já levei ovo e pancada de
tapete e camisa molhada"

Embora a campanha deste ano tenha tocado no assunto, os ciclistas não se empolgaram. “Nada muito animador”, diz Gunnar Thiessen, comentando o pleito em Curitiba. Morador de Belo Horizonte, Humberto Fernandes fez um relato ainda mais desanimador:

- Aqui, há um prefeito que usou a bicicleta como mote de campanha, mas chegou a ser tachado de ingênuo por um jornalista que alegou que o relevo da cidade inviabilizaria o uso da bicicleta. Os demais não a citaram, embora todos tenham mencionado o trânsito como problema prioritário - sabem que a saída está no transporte coletivo, mas evitam falar que o automóvel terá que ser sacrificado. Ninguém toca nos temas rodízio de placas ou pedágio urbano, porque sabe que isso é suicídio eleitoral - conclui.

Fonte: Terra Magazine.

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